domingo, 16 de agosto de 2015

Trecho do livro "Beholder"

Minha Filha
Um aviso a você antes de continuar a ler isso: estou idoso e morrendo.
Se me perguntarem qual é a coisa (ou lembrança ou lugar) capaz de me fazerem mover montanhas, enfrentar exércitos, enfrentar a mim mesmo (o que é muito mais difícil que enfrentar um exército), eu diria que é pensar em minha filha.
Pensamos na mulher amada quando somos jovens.
Agora que o calor da paixão se atenuou, que as fantasias juvenis sobre a mulher ideal parecem ridículas, que minha amada esposa se ressente da velhice que avança e me pede o que eu (e nenhum outro ser humano) sou capaz de dar, eu volto minhas fantasias para meu rebento, minha Estrelinha, meu Raio de Sol.
Minha Diana.
A lembrança mais doce que eu guardo da infância dela foi a primeira vez que jogamos bola na praia.
Seu riso ainda soa em meus ouvidos após tantos anos. Me realizei quando ouvi pela primeira vez: “Papai”.
Naquele dia, essa palavra possuía um timbre mais melodioso.
Quando ela cresceu um pouco, tentei fazê-la amar aos livros tanto quanto eu amo.
Ela preferiu os esportes e tentou fazer um book para entregar numa agência de modelos. Não escondi meu desapontamento, por isso ele foi embora rápido.
O que eu perdoei foi ela fazer drama quando a proibi de morar com um irresponsável chamado Renato. Ela era menor de idade, então fiquei firme por uma semana. Greve de fome, depressão, todas as chantagens possíveis Diana tentou.
Fiquei firme por um mês. A mãe dela cedeu primeiro e ameaçou pedir o divórcio. Aí, escolhi ceder.
Um mês depois de se mudar, Diana voltou para casa arrependida e sem estar grávida. Parecia que tínhamos ganhado na loteria! Que festa!
Após a faculdade de Direito, ela passou num concurso público e foi empossada num bom cargo. Eu e minha mulher ficamos tranquilos.
Quando eu fiz 56 anos ela queria que eu parasse de dirigir, mas ela voltou atrás porque sabe o quanto eu gosto. Os momentos que passamos mexendo no meu carro ou no dela eu não troco. Ela se suja toda e ri feito aquela menininha na praia. Nunca lhe ensinei mecânica, ela parece que nasceu sabendo.
Como eu amo minha menininha.
Ela me ajudou a salvar meu casamento tempos depois. Para comemorar, fomos viajar. Foi aí que Diana me ensinou a pescar.
Hoje estou numa cama de hospital, sem me lembrar de quem sou a maior parte do dia. Estou com 76 anos e Diana com 44. A mãe dela chora tanto que acho que vai nos afogar.
Engraçado, nunca me esqueço da Diana, que sempre faz piadas para me animar. Maldito Mal de Alzheimer.
Quando estou prestes a fechar os olhos pela última vez, não vejo uma lágrima sequer no rosto dela.
Eu sei que está guardando para depois que eu partir. Ela quer me alegrar até o último segundo.
Que vida boa eu tive.
Que morte doce: assistido por quem me ama.

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